Pensei muito antes de escrever aqui para ti... Não porque nunca te tenha escrito, mas porque te sinto como das coisas mais privadas que tenho. Depois, lembrei-me do quanto tu gostavas de escrever, do poeta que tinhas dentro de ti, de como gostavas de deixar no papel o que vivias... E foi o mais importante que me deixaste! As tuas folhas rabiscadas, ora com poesia, ora com diários de uma vida às vezes leviana, ora com nomes estranhos da industria farmacêutica...
É o que tenho teu. É o que era teu, agora é meu, e um dia será das minhas filhas! E acho que é por isso que também gosto de escrever... Porque passar os nossos sentimentos e as nossas memórias para o papel faz com que se tornem eternas.
Recordo-me de ti a declamar poesia, normalmente já depois de uns copos de vinho...
Os poemas saiam da tua alma, com a mesma intensidade com que o poeta um dia os escreveu num papel.
Recordo-me de ti como um homem bom, muito humano, muito humilde, muito amigo, de uma simplicidade rara, e com um desapego aos bens materiais que só conheci em ti.
Sonhador, libertino, de coração aberto ao mundo, gargalhada fácil, sorriso bondoso.
Tinhas pouco juízo, é verdade. Mas um sentido de justiça gigante.
Viveste a vida sempre à tua maneira, subiste na vida com uma inteligência desigual, caíste tantas e tantas vezes, e ergueste-te outras tantas.
Foste o melhor amigo que alguém podia ter, aquele que dá o que tem e o que não tem, aquele da "camisa branca" como diz a musica que tanto ouvíamos... Não eras o amigo presente, mas eras o que aparecia sempre que era preciso! Acho que herdei isso de ti.
Tinhas de viver rodeado de paixão. Ou pelo menos de algo que achasses (e sentisses) que era paixão. E, embora me tenhas ensinado que a paixão um dia passa e que o mais importante na vida é o amor (sabias tão bem isso, em teoria), precisavas sempre de te sentir apaixonado! Assim, viveste intensamente todas as tuas paixões, enquanto duraram. E sei que levaste contigo cada uma delas no coração. Algumas ficaram no meu também, até hoje. Outras não, é assim a vida.
Sou filha de Pais separados que, com orgulho, posso dizer que os meus Pais foram sempre os melhores amigos! Até ao fim. E, olhando em volta e vendo o que hoje se passa com tantas famílias, tive uma sorte do caraças! Nem sempre foste presente, mas também nunca te senti ausente, porque houve sempre uma mulher extraordinária que me lembrava que tu, mesmo não estando era como se estivesses, e com uma arte que só se explica pelo facto de ser uma Mãe como há poucas, camuflava a tua ausência. E estava tudo bem.
Foi muitas vezes Pai e Mãe, mas nunca esteve sozinha nisto de criar uma filha. Porque tu, não estando sempre, estavas lá quando era preciso.
Foste um Pai para muita gente, um professor para outros, e um sogro que fazia questão de pedir ao genro que não seguisse as suas pisadas. E sei que, onde estiveres, estás muito orgulhoso dele, e do homem (e Pai) que se tornou...
Mostraste a muita gente, enquanto cá estavas e quando partiste, que realmente o que interessa nesta vida é vivê-la da forma que mais gostamos, com valores, alegria, bondade, simplicidade, humildade e respeito pelo que nos rodeia.
Um dia ouvi dizer que existem coisas que só alguns sabem, poucos compreendem e ninguém percebe... E acho que é isso que me acontece hoje. Porque, dizer que te sinto mais em mim agora que não estás aqui, não faz muito sentido para os outros... Mas é o que sinto. Sou feliz por me sentir assim, e grata! Grata a ti, à minha Mãe, e a esta capacidade de olhar para trás e só conseguir ver as coisas boas. São apenas essas que agora vivem na minha memória e no meu coração... Talvez por isso só agora te sinta tão por perto... Mais perto do que nunca.
Às vezes olho para o céu com as princesas e elas dizem que desenhaste nas nuvens... Tantas vezes! Sempre que as nuvens têm uma forma diferente, lembram-se que foste tu que as desenhaste para elas poderem apreciar... Elas são especiais Pai! Sei que podes sentir isso aí onde estás, e peço-te que as protejas sempre!
E quando poderes, escreve-nos um poema nas nuvens!
Um beijo, daqui até aí...
"Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
(...)
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia !
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado, não!" - Ary dos Santos